quinta-feira, 7 de julho de 2011

Coluna do Miguel Arcanjo nº 178


Caro leitor, não poderia deixar de publicar neste espaço um dos melhores textos que li nos últimos tempos. Verdadeiro, profundo, simples e triste, como a vida o é muitas vezes. Espero que você goste.

Pacha

Por Juan Manuel Tellategui*


Hoje faz frio. Provavelmente seja um dos dias mais frios que vivi aqui. Talvez, seja assim mesmo, como em forma de metáfora.

Há dias, me lembrei dele. De forma passageira, como quem recorda a alguém que não vê faz um tempo e este surge representado em forma de um pensamento fugaz. Talvez, me avisou um anjo, ou talvez ele mesmo veio me visitar.

Como às vezes gosto de fazer, coloquei o computador em um programa da televisão argentina, no qual levam especialistas que relativizam todos os temas cotidianos, tornando-os frívolos e banais.

Este era o caso de quem tinha TOC, e a psicóloga falava, explicava e exemplificava os diferentes tipos de obsessão que existem. Eu escutava, de fundo, enquanto ordenava roupas e esperava não encontrar-me em nenhum daqueles casos.

Para minha curiosidade, alguns tipos de colecionadores também são obsessivos, e o exemplo foi o de uma pessoa que transforma sua casa em um depósito de coleções a ponto de ficar difícil viver dentro dela.

A casa de Pacha, pensei. E pensei também em um monte de perguntas para mim mesmo: Será que a casa dele foi acumulando cada vez mais livros, revistas, móveis de madeira encontrados na rua, entulhados até o teto? Eles eram reciclados pelo marido da Elcira, a senhora que fazia a faxina da casa. E os figurinos teatrais? Muitos, cada um permanecia como se encerrasse dentro dele uma história do passado. E as garrafinhas? Tantas garrafinhas de coca-cola... Insumo grátis – ele dizia – para uma cenografia original, que se utiliza como recurso para o passar do tempo na obra. Como estará? Tanto tempo...

E continuei com minhas coisas e com o relato do programa de TV.

Hoje, um dia como os outros, frio por demais, abro uma janela do Google para fazer uma busca relacionada a meu trabalho.

O azar, o destino, uma página leva a outra, uma sucessão de informação, e tudo acontece rapidamente. Um texto sobre Pina Bausch, ah, e tem uma foto do espetáculo inspirado no Japão que vi em São Paulo. Alternativa Teatral, claro, todos estamos em Alternativa Teatral. Página 12, que boa notícia, não sabia que havia escrito para Página. Tampouco me surpreendeu. Recordo que as manhãs dos domingos ele ia comprar o jornal para lê-lo tomando mate e, às vezes, com facturas.

Recordo os cálidos domingos de inverno, com o sol entrando na perpendicular por essa janela alta para espantar o frio. Até que cheguei a uma carta em um blog.

A última vez que nos vimos foi na Feira do Livro. Faz um, dois anos, talvez. Encontramo-nos na calçada da avenida Sarmiento, enquanto escutávamos Caetano acústico, sozinho com um violão. A noite era tranquila na multidão, fazia calorzinho, era uma noite de verão agradável. Enquanto colocávamos na agenda de nossos novos celulares os nossos novos números de telefone, ele me contava que estava muito feliz, porque havia conseguido um estande com “a revista” na feira. Não me atrevia a indagar demais, porque ele dava como certo que eu sabia tudo sobre “a revista” e poderia entender uma pergunta daquelas como uma falta de interesse minha sobre seus projetos nos últimos anos. A revista. Fiquei entusiasmado ao vê-lo tão entusiasmado, tão cheio de projetos, como sempre, tão projetado. Sempre ocupado.

Recordo que um dia ele me disse: “...que é a vida, senão, um sem fim de buscar um sentido”. Para dar-lhe um sentido, e quando começa a perdê-lo, buscar outra coisa, e outra, e assim até sempre... Sendo assim um incansável buscador de vida.

Retumba faz muito tempo essa frase dentro de mim. Eu me apropriei dela como se fosse minha, porque ele a me presenteou em um dia que eu estava triste. Quanta simples sabedoria. Quanto amor. Porque só quem teve calo de dor pode compreender a dor alheia e, ainda assim, distanciar-se para uma palavra, uma frase que valha a pena. Esse também, creio, era um de seus sentidos, a generosa hospitalidade compassiva.

Assim foi que nos conhecemos também.

Recordo as reuniões que tive o privilégio de participar, onde se falava de estética, semiótica, formas, arte, formas expressivas, usos do correto discurso castelhano. Tudo está comigo, esse foi seu maior presente. Naquele então, ele me chamava de “criatura”, e eu gostava que ele me chamasse assim também.

Como tudo acontece coma velocidade do dia a dia, pensei em ir visitá-lo e levar-lhe um uísque de presente, talvez um vinho, como agradecimento. Entretanto, essa ideia parecia-me demasiado formal... E esperando... Não sei, uma ideia melhor, deixava pendente para, mais adiante, dar um presente a Pacha.

Foi em 25 de maio. Que fiz em 25 de maio? Ah, sim, foi um dia qualquer, somente que não foi feriado e fazia calor. Lembrei-me da tradicional mazamorra que faz minha avó aos 25 de maio e pensei se neste ano ela faria também. Ninguém da família gosta de mazamorra, mas eu gosto e neste ano descobri que também se chama canjica.

Tudo continua como sempre, a vida das pessoas não se detém, não devem deter-se, porque é assim.

O tempo é tão curto.

Não sei se interessaria a ele que alguém o chorasse. Creio que, uma vez, fazendo piada, até disse que preferiria que se fizesse uma festa e que todos terminassem bêbados. Provavelmente, hoje eu faça um brinde em sua memória, em silêncio, à distância. Provavelmente, enquanto ele tenha um sentido, vai permanecer sempre conosco, a família da vida.

Obrigado, Pacha, por tudo o que foi para mim, “te quiero mucho”.

*Juan Manuel Tellategui é um ator argentino.